domingo, 2 de julho de 2017

 Tem dias que só de abrir meu e-mail eu sinto uma coisa gelada me subir e eu preciso de uns cinco minuitinhos no banheiro para me organizar. Tem dias, que o discurso de um professor me faz com que eu me sinta a aluna mais atrasada e preguiçosa da sala. Tem dias que eu me sinto péssima, porque mal consigo conviver com meus pais ou conversar com meu namorado, só porque tudo é muito corrido e desengonçado. Tem dias que eu tenho raiva daquelas reportagens bacaninhas de meninas descoladas que largam tudo porque resolvem abrir uma escola de yoga vegana em budapeste. Tem dias que eu começo a minha manhã comendo direito e fazendo exercício, mas às três da tarde eu já estou tão ansiosa que tomei 6 xícaras de café, e eu sei que não é algo do momento, mas que eu realmente sou assim: a pessoa de muitas xícaras e um coração acelerado que só quer mostrar, desde 1994 que está aqui, e que pode não saber nada de química ou de geologia, ou de direito administrativo, mas que gostaria de aprender, se alguém tiver a paciencia de ensinar. Eu só queria mostrar que eu posso não saber nada de química ou de geologia ou de direito administrativo, mas eu sei fazer um brigadeiro incrível, tenho um ótimo cafuné e sei contar histórias de deuses gregos e de pintores da Belle Epoque muito bem.
 Eu fico tão esbaforida que às vezes, enquanto desembaraço essa cabeleira meio coxa e meio hippie que acabo me lembrando da bisa lourdes e penso  que quando ela tinha minha idade, já tinha filha e casa pra cuidar, além de fazer o seu próprio pão, não por moda da época, mas porque super mercados e padocas vinte e quatro horas ainda não eram uma realidade. E eu penso: nada é melhor nem pior, só é diferente, e eu tenho muita sorte. Porque eu gosto de ter essa liberdade de tomar uma cerveja com minhas amigas, de dormir na casa do meu namorado e de ver desenhos idiotas com meu irmão. Eu tenho essa liberdade de hoje achar que meu negócio é centro espírita mas  amanhã pode ser aula de cerâmica.
 Sempre me dizem como eu sou nova. E mesmo que eu não deva me comparar, aos 22, minha avó era mãe de família e minha mãe estava formada. As avós que oferecem bolos quentes e tem coques brancos me parecem tão distantes como aquelas que não são avós, mas bebem deliciosos drinks em cruzeiros além mar. É que tudo parece tao distante e tao perto, e fico me perguntando quando sera o dia em que minhas maos terao manchas e eu saberei dar um bom conselho. Porque eu fico pensando, será que essa vida ensina alguma coisa pra além das descoladezas do momento?
Você não deveria reclamar. Hoje seus amigos todos tem depressao porque são muito mimados, e há trinta anos os amigos de alguém mais velhoestavam morrendo de aids ou de qualquer doença aleatórias porque era esse o preço a se pagar para estarem vivendo algum grande momento ou por serem o que eram em algum momento. Minha bisa hoje usa batom vermelho para receber as visitas e tem um bule sempre quente, e minha avó borda em um quarto de costura ao mesmo tempo que tenta aprender a usar os aplicativos de seu celular. E é tudo tão rápido e tão bonito.
 Em 2015 a gente comprou uma plantinha e plantou e cuidou dela com carinho, mas ela morreu mesmo assim. Em 2015 meu cachorro era animado e todos os rumos e vontades pareciam tão diferentes. E aí, tudo acaba, mas fica. Que nem cheiro de lenha queimada depois de fogueira.

Eu já respiro, porque tudo é tempo. 
E a única coisa que cabe a ele é justamente
passar por nós.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Terra com ódio, terra sem lei

     Eu tenho um irmão mais velho. Quando ele nasceu, há vinte e seis anos, o Brasil vivia uma "democracia" há muito pouco tempo. Depois eu vim, e assim vieram meus primos todos. Nossa geração é a primeira, em todos os lares do Brasil que não nasceu e nem cresceu em um regime ditatorial.
   Meus pais viveram a era dos militares. Meus avós conheceram a era Vargas e os estados de Sítio. E eu só soube o que era isso pelos livros de história, por um ou outro filme ou pelos casos que minha família contava. Ninguém em casa foi um super guerrilheiro ou chegou a ser preso. Isso porque todos sabiam ficar muito quietinhos sobre suas ideias políticas, e quando chegava a hora de uma passeata, sempre iam pelos cantos. Eles tinham medo, porque na época, contestar era contra a lei. Os soldados desciam a porrada, prendiam todo mundo e sabe-se lá se você voltaria para casa vivo.
  Eu ouvia isso achando tudo ao mesmo tempo muito heróico e muito bobo. Heróico porque é preciso ter muita coragem para bater de frente (ou de cantos) numa época como aquela. E bobo porque era meio irreal imaginar uma época tão próxima da minha em que se era preso por ir às ruas dizer o que pensa.
 Pois é.
  Qual não foi a minha surpresa ao acordar um belo dia e me deparar com um país coberto de ódio. Com pivetes linchados nas areias de Copacabana, com policiais em tanques de guerra na Av. Paulista, com pessoas que, eu quero muito acreditar, estão surdas e cegas para qualquer justiça. O país que me lembro de quando criança e que meus pais pintaram pra mim de fato mudou. Mas, sinceramente, não me sinto em uma democracia quando escrevo esse texto de casa, porque vou cogitar até o último segundo antes de ir à essas passeatas. De onde eu moro, eu ouço bombas e tiros de borracha a valer, mas só quando quem está na rua é um povo sem partido, que trabalha em metrôs ou estuda nas universidades e colégios bambos por aí. Às vezes, aqui de casa, vejo um pessoal de amarelo protestar,  mas os soldados, que então são poucos, apenas assistem e tiram fotos com os amarelinhos. Parece copa do mundo.
    Eu sou estudante e não tenho a "camisa da seleção" e nem as ideias que ela defende, embora eu ache saudável qualquer manifestação de pensamento que não oprima ninguém. Eu sou estudante, e acreditei por tempo demais que tinha sido abençoada em nascer em uma era livre da ditadura. Eu não tenho partido, mudo bastante de ideia, mas eu aprendi que a gente sempre deve levantar a voz quando não acha algo certo. Pagar o que se paga por um transporte que no melhor dos termos é medíocre, e ser encurralado e apanhar quando não concorda com isso, é para se encher de raiva mesmo.
   Hoje,estou aqui, sabendo que esse aumento é injusto e surreal. Estou aqui, sabendo que a polícia é injusta e violenta, que os políticos são injustos e omissos e que muita gente que acha que quem sai nas ruas "é um bando de marginal que tem que apanhar porque eu vou demorar mais duas horas no trânsito", não é injusta, mas seriamente carente de livros de história, direito e doses cavalares de empatia.



  

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores



Minha flor, fico olhando assim para você. Tão brotinho ainda. Fico olhando o mundo florzinha, e penso se é mesmo boa ideia você desabrochar. Não são tempos fáceis para nós, sabe? Para falar a verdade, nunca houve tempo fácil para gente como nós, não é? Mas eu quero que quando vier, venha preparada. Quero contar algumas coisas, e de todas que existem, acredite, são bem poucas.
Eu queria te contar sobre aquele primeiro assédio que foi igual a tantos outros que viriam depois, que nem posso me lembrar. Eu queria falar sobre a Valentina. Sobre a moça que eu vi outro dia sendo motivo de chacota dos guardas do metrô porque ela reclamou de um abuso sexual. Queria falar sobre aquela amiga da prima da sua amiga que resolveu abortar, tomou um remédio errado e se deu mal. Queria falar daquela conhecida que é mãe solteira porque o pai abortou e ficou por isso mesmo. Eu queria falar da menina de quinze anos que foi expulsa da escola porque uns garotos viralizaram sua nudez. Queria falar sobre o olho roxo da colega de trabalho e da menina estuprada e calada por tantos anos. Eu queria falar sobre os corpos, escolhas, e caminhos que não são nossos, mas dos outros. Eu queria falar dos martírios da beleza e do nosso sexo, e de como tantas vezes a única coisa que parecemos possuir é medo e vergonha.
  Eu queria falar das mulheres que morrem pelo ciúme ou luxúria dos outros.  Eu queria falar sobre as meninas de 11 anos leiloadas nos garimpos e nas mães de catorze primaveras. Eu queria falar das moças que pagam sua diversão com o nome sujo na praça. Eu queria falar daquelas que apesar de tudo escolheram ser mulheres.
 Eu queria falar da Nossa Virgem e de Afrodite. De Frida, Oxum,  damas pretas e damas brancas. Queria falar das putas,das gordas, das bruxas, daquela moça que teve as mãos amputadas pelos ciúmes do marido e da garota que foi proibida pelo namorado de sequer cumprimentar seus amigos.
  Mas não é só isso.
  Eu queria falar do grupo de mais de cem mil meninas que se ajudam e se compartilham todos os dias em um grupo da internet. Queria te contar da redação do Enem. Eu queria falar sobre a mãe que separou-se de um padrasto abusador e da apresentadora famosa que comprou briga com pedófilos. Eu queria falar sobre as garotas que pararam para brigar pela moça abusada no metrô e sobre os espelhos de osíris espalhados pela Universidade. Queria falar sobre o colégio que monta um espetáculo sobre igualdade e da engenheira elétrica que arrasa na sua profissão. Eu queria falar daquela professora trans, do caminhão de mamografia solidária que vai para os confins do Brasil prestar exames de graça pra quem mais precisa. Eu queria falar sobre uma menina chorando no corredor e que foi amparada por uma desconhecida. Queria falar da geração das nossas mães, que quiseram vencer em suas carreiras e ainda serem mães. Queria falar daquela página da internet que falou e mostrou coisas para a garotada. Queria falar do filme de criança pra frentex e do menininho que quer ser uma princesa no dia das bruxas. Eu queria falar sobre a moça dos vídeos caseiros que nos disse para não tirarmos o batom vermelho.
  E tudo isso não é nem o começo do que se tem a dizer. Calma, minha flor. É primavera nesse mundo louco. Toda flor há de sofrer. Mas meu amor, lembre-se sempre: para cada uma que perece por causa do ódio e da desigualdade milenares que pairam no mundo, mais uma dezena floresce. Florzinha, é primavera nesse mundo louco. Vem conosco, não tenha medo. Vamos juntas.










quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Feliz dia de quem veio pra ficar

  - Mas você quer ser professora? - pergunta o jovem espantadíssimo no meio da festa.
   Eu gaguejo o começo de uma resposta, mas logo me calo. Penso em dar-lhe uma justificativa, um chute, um sorriso. Aquela pergunta, aqueles olhos arregalados, aquela entonação, tudo me deixava um bocado desconfortável e um bocado triste. Desconfortável porque eu era só uma caloura, com dezoito anos recém-feitos e não tinha ideia do que faria, um dia, com meu diploma. Triste porque aquela pergunta, com aquela entonação e aqueles olhos arregalados, vindos de quem vieram, pareciam me culpar por alguma loucura.
   Então eu queria ser professora? Queria ter essa profissão ingrata, mal paga e mal vista? Justo eu, uma menina tão viajada, criada a pão de ló, tão bem educada? Eu era o que? Louca? Não tinha noção do país onde vivia?
  No meio do meu monólogo de culpa e indignação, vi minha mãe sentando em um sofá e começo a tecer um emaranhado de lembranças boas. Minha mãe é professora.  Todo dia ela vem contar feliz como foi a aula dela. O que os alunos acharam, o que ela está pensando em colocar no programa do próximo semestre. Ela dá aula para marmanjos de faculdade, e ainda assim, lembra do nome, curso e sorriso de cada um. Minha mãe ganha presentes dos alunos, emails, abraços quando os encontra fora da sala. Ela é professora, poderia ganhar mais, poderia descansar mais, mas ela conta do seu dia e dos seus alunos com um brilho nos olhos que eu sei que não a fariam mudar de profissão por nada.
  Quando eu e meu irmão éramos pequenos, ficávamos o sábado  todo com ela, porque meu pai ia dar aulas de desenho. Meu pai já não é professor, mas nunca o deixou de ser. Durante toda nossa vida escolar, foi ele quem dava aulas particulares de física e matemática para mim e meu irmão (é verdade que sem muito sucesso). No colegial, durante algum tempo, meus amigos que queriam prestar arquitetura vinham em casa toda sexta feira de noite, para uma aulinha grátis de desenho e história da arte.
 Meu avô materno conheceu minha avó porque era seu professor de português. Hoje, ele dá aulas de mitologia e ortografia do seu sofá, para o público seleto de seus seis netos. Meu avô paterno distribuía sanduíches para os alunos enquanto faziam provas. Hoje, ele dá aulas lá no céu. Infelizmente, o sinal do recreio bateu para ele muito antes de eu nascer.
 Tenho uma tia que é professora e não dá aulas, mas shows. Todo mundo que é da turma dela, vira logo fã.
 E quantos professores eu não tive que sou fã até hoje? O professor de latim que recita poemas infantis e o professor de história que vinha dar aula sobre séculos de humanidade só com dois gizes coloridos e uma garrafinha vazia de gatorade.
  O primeiro conforto que recebi depois do acidente do meu pai, foi o abraço de uma professora. Ela ainda me abraça toda vez, do mesmo jeito quente e carinhoso, mesmo depois de seis anos. Foi um professor que me fez entender o quão infantil e preconceituosa eu era, na marra. O primeiro pé na bunda que tive, a primeira morte que eu chorei, os segredos que eu contava, mesmo sem saber, numa prova ou numa lição eram com eles. A primeira pessoa que por minutos eu odiei e também a primeira pessoa que eu admirei na vida e que não eram da minha família, foi uma professora.
  Teve aquele que fazia chamada oral. Teve aquela que fazia espetáculo pra todo mundo brilhar. Teve aquele que chegou de última hora e ficou pra sempre. Teve aquela que fazia fogueira pra a gente sonhar.
 Penso na constelação de todos os professores que já passaram pela minha vida - no sangue, nas aulas, nas amizades - e respondo para o garoto:
- Professora? Por que não?

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Chove na cidade

 Chove na cidade.
 A água das enxurradas lava os meus pés e corre como nós. Não há proteção de guarda-chuva que baste e de repente ficou tão frio que os dedos perderam a cor.
O céu se confunde. Sua cor não tem nome, mas é imensa. Branco, cinza preto e depois branco e depois roxo muito claro com nuvens cinzas. Os olhos cerram-se protegendo-se das gostas que vem do mundo e às vezes, porque a vida não é sempre fácil e não é sempre bonita, vem de nós.
 Chove na cidade.
As buzinas soam mais altas e um aglomerado de dez, vinte, trinta pessoas se espremem nos pontos de ônibus transparentes e nas bocas dos butecos - imundos ou não - até que o dilúvio cesse. Passa, correndo e desvairada, uma ou outra pessoa. O mendigo, o travesti expulso, o viciado. Um apressado ou skatista que não quiseram ficar na arca.
 Chove na cidade.
O vendedor passa pelos vagões e portas de estações com seus guarda-chuvas. São de todas as cores e tamanhos, nascidos na China e frágeis demais para aguentar uma primavera inteira. Os trovões que não avisam sua chegada assustam crianças, bichos e homens. A adolescente abraça seus cadernos ensopados , temendo os olhares para os peitos jovens  sob a camiseta branca molhada. Um pingo gelado desce pela minha nuca e me enche de medo. Um ônibus imenso passa zunindo e afoga sem piedade uma pequena multidão. Alguns carros naufragam, e dentro deles, seus motoristas morrem aos poucos de tédio, estresse e solidão.
 Do céu, caem pingos de chuva e de uma esperança opaca. A tempestade que lava as ruas, os carros e algumas almas mais sensíveis. A chuva que leva tudo, os móveis comprados em trinta prestações, os telhados, as casas.
 Chove na cidade.
 E em nossos corações.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Tragédia diária

  Na noite de ontem, um colega foi baleado na frente do prédio da Letras. Ele reagiu a um assalto. Levou um tiro.
 Hoje, antes mesmo da primeira aula da manhã, três carros de emissoras famosas do Brasil estavam ali, na frente do prédio singelo, provisório há décadas, para reportar em primeira mão a tragédia. Tragédias, meus queridos, são audiência e sucesso garantidos desde os tempos de Homero. Mas também, desde aquela época, para que corações se compadeçam, as tragédias só são realmente tristes dependendo de quem as sofre e onde acontecem.
 Há algumas semanas, surgiu um documento na internet incitando o estupro de alunas da FFLCH. De brinde, ele ainda dava dicas dos melhores lugares e horários para o crime ser feito.
 Não se sabe o número de assaltos e de estupros por lá. Muitos nem chegam a ser contados. Mas eu tenho certeza de que todo dia a gente tem medo ao andar por aqueles bosques.
  A cidade universitária nunca foi segura. Para além de escura, sem policiamento e enorme, ela é despovoada. O espaço, cheio de árvores, praças e até museus permanece intocado pela comunidade. A comunidade da cidade de São Paulo, também "proprietária" do campus, ainda que não estude ou trabalhe nele.
 A comunidade que quando assistir a notícia do assalto na TV, terá pena. Talvez raiva. E que está mais íntima do programa do Datena do que daquele imenso espaço público, bem debaixo de seus narizes.
 Pessoalmente, não tenho receio de ir a aula com o medo de ser assaltada ou pior. Estudo cedo, sou cautelosa. Mas a gente sabe que o mundo real tudo pode acontecer.
  Tem dias que eu bem que queria a PM por lá. Mas o quanto ela me protegeria? O quanto protegeria meus colegas, nem tão brancos, nem tão privilegiados? A USP não pode continuar entregue ao Deus dará, é fato. Mas ali perto, em Osasco, não faz muito tempo, chacinas aconteceram e foram esquecidas. Ali perto, em São Remo, tanta coisa acontece e não há carro de emissora de televisão para noticiar.
  E então a gente, que está com coração apertado com o que aconteceu ali na porta da sala de aula, pára e se dá conta de que aquilo é só uma lasquinha de um problema muito maior, muito mais feio, e que às vezes, talvez por estarmos com os narizes enfurnados demais em livros ou porque a tragédia não seja hábito nesses cantos da cidade, nos esquecemos de que seja algo cotidiano.
 Porque a tragédia nessa cidade não é coisa de festivais. Ela é crônica que cada dia se reinventa.

  

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Villa Mix : velhos hábitos que nunca mudam.

  Em um bairro chique e bonito da cidade, onde as luzes são brilhantes e a cerveja nunca é barata, há uma casa noturna com filas de dobrar o quarteirão. Lá, as noites são mais divertidas, os beijos na boca tem um gostinho de vodka cara e as músicas são o que há de top nas paradas nacionais. Os ricos vão sempre. Os chiques, os famosos, os artistas, os jogadores de futebol, os músicos famosos, e principalmente: os bonitos.
 Moça de sapato baixo e cabelo "ruim" não entra. Quadris que não sejam número 38 e peles que não honrem 3 gerações (no mínimo!) de brancas linhagens européias também não tem chance.
 Mas o povo é teimoso e quer entrar mesmo assim. Alegam nomes na área VIP, ingressos comprados, listas de aniversário. Alegam que segundo a nossa bela e manca constituição, discriminação é crime. "Essa gente é muito chata, querem ser sempre politicamente corretos e estragar a noite da galera." dizem alguns clientes. " Ai, quanto mimimi, eu nunca vi discriminação", dizem outros. "Eu acho bom selecionar um público TOP de gente bonita e descolada", é a cereja do bolo.
  Se os excluídos insistem, ouvem poucas e boas. Lorotas. Não é raro que apertem um braço ou deem empurrões para que os feios e indesejados desistam de vez de entrar naquela casa noturna tão bacana.
  Essa balada e o que acontece nela realmente existem em algum recanto da Vila Olímpia, em São Paulo.  Há alguns dias, milhares de garotas começaram a publicar seus relatos sobre atos de discriminação por parte dessa conhecida boate. Por falta de vontade e de dinheiro, nunca peguei fila para entrar lá. No entanto, sendo loira, alta, magra, olhos verdes e usando um bom salto alto, sei que muito dificilmente seria barrada ali. Mesmo assim, não pude deixar de ficar muito puta da vida com o que acontece  naquele lugar que eu nunca nem mesmo fui, e como que uma porção de outras meninas, meninos e promoters (espécie de população crescente e cérebro muito pequenininho) dizem para defender a casa.
 Não sofrer  e nunca ter sofrido preconceito não significa que ele não exista. Nesse país tropical abençoado por Deus em que vivemos, quem nunca sofreu injustiça é quem mais a comete e se cala diante dela.
  Hoje, as noites são nas baladas de filas de dobrar o quarteirão. Hoje, os movimentos são feitos pela internet e um monte de gente que nem se conhece briga ou fica amigo em questão de uma frase publicada. Hoje, a gente diz que o racismo acabou com a  escravidão, o machismo com o voto universal e a gordofobia... que é isso? Isso nunca nem mesmo existiu.
 Os tempos mudam, mas a elite ainda age, pensa e compactua com preconceitos e atitudes segregacionistas que teriam feito sorrir muitos senhores de Engenho do passado.
 Como não poderia deixar de ser, essa renomadíssima Balada paulistana não está sozinha em sua política de "seleção natural". As portas se fecham para aqueles que são fora do padrão em cada shopping, restaurante, emprego, festas, em cada olhar torto e beiço franzido no meio da rua ou risadinha maldosa.
   Mas nem tudo são trevas, e no meio de tudo isso ainda há pessoas que batem no peito para dizer:
"Agora chega".